terça-feira, 6 de outubro de 2009

O Narrador (Walter Benjamin) em Ponte para Terabítia

O Narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov

Segundo Walter Benjamin, a obra de Nikolai Leskov tem características de narrativas primordiais. Para fundamentar seu ponto de vista, Benjamin fala em seu texto sobre as características dos narradores orais. São essas características que destacarei aqui, buscando refletir sobre o filme Ponte para Terabítia.
O texto começa com a afirmação de que a arte de narrar está em extinção. São cada vez mais raros os bons narradores. Estamos perdendo uma das melhores faculdades do homem: a capacidade de intercambiar experiências.
Isso acontece porque o valor da experiência está em baixa e tudo indica que diminuirá até desaparecer. Não se conta mais a própria experiência aos outros. Essa experiência passada de pessoa para pessoa é a fonte dos narradores. Entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais de narradores anônimos. Benjamin destaca dois grupos entre os narradores:
- o marinheiro comerciante – o narrador como alguém que vem de longe e conta a história de suas viagens.
- o camponês sedentário – o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do país e conhece suas histórias e tradições.
Estes dois estilos produziram suas respectivas famílias de narradores. Porém, a extensão real do reino narrativo em todo o seu alcance histórico só pode ser compreendida se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos arcaicos. O sistema corporativo medieval foi importante nessa interpenetração. O mestre era sedentário e seus aprendizes, viajantes. Mas antes de tornar-se sedentário, o artífice também havia sido um aprendiz e, portanto, um viajante.
Os dois estilos apresentados fundamentam minha primeira reflexão sobre o filme. Cada um dos personagens é um tipo de narrador. Leslie acabou de chegar à cidade, é uma forasteira, uma viajante com experiências e costumes completamente diferentes dos moradores locais. Jess, por sua vez, é sedentário. Vive naquele lugar há muitos anos e conhece a terra em que vive.
A narrativa tem sempre uma dimensão prática. Pode ser um ensinamento moral, uma sugestão prática, um provérbio ou norma de vida. O narrador sabe dar conselhos. Dar conselho hoje parece antiquado porque as experiências estão deixando de ser comunicáveis. Como dito por Benjamin:
Aconselhar é menos responder a uma pergunta que fazer uma sugestão sobre a continuação da história que está sendo narrada. O conselho tecido na substância viva da existência tem um nome: sabedoria. A arte de narrar está definhando porque a sabedoria- o lado épico da verdade- está em extinção. (BENJAMIN, 1936)

Este processo vem de longe e tem se desenvolvido com a evolução das forças produtivas. Mais uma vez, Leslie mostra uma característica dos narradores: sabe aconselhar. Durante vários momentos do filme, a garota dá conselho aos personagens, como na cena em que Janice está chorando no banheiro. Leslie entra no banheiro, deixando de lado a rivalidade com Janice, e a aconselha, dizendo para a menina o que aprendeu durante sua vida. Outra atitude de Leslie que a faz aproximar-se de uma narradora é o fato de ela sempre contar histórias para ilustrar o que deseja falar para Jess. No livro Ponte para Terabítia, Leslie conta a história das Crônicas de Nárnia para Jess tentando ensiná-lo como ser um rei. É interessante que ela conte a história para ele ao invés de sugerir que ele a leia. Desta maneira, suas narrativas (como as do narrador tradicional) têm sempre uma dimensão prática.

O surgimento do romance no início do período moderno marcou o início da mudança das comunicações. O que separa o romance da narrativa é que ele está essencialmente vinculado ao livro. a difusão do romance só se torna possível com a invenção da imprensa. Ele não procede da tradição oral nem a alimenta. Distingue-se, especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele conta (experiência dele mesmo ou relatada por outros) e incorpora a experiência do ouvinte às coisas narradas. O romancista segrega-se. O romance tem sua origem no indivíduo isolado; que não recebe nem dá conselhos.
O processo aconteceu lentamente. A origem do romance é na Antiguidade, mas encontrou apenas na burguesia ascendente as condições para seu florescimento. Com esses elementos, a narrativa começou à tornar-se arcaica. Com a consolidação da burguesia destacou-se uma forma de comunicação que, mesmo sendo antiga, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. É mais ameaçadora que o romance e produziu uma crise no próprio romance. É a informação.
Com ela, o saber que vem de longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos próximos. O saber de longe (espacial ou temporal) dispunha de uma autoridade válida mesmo que não verificável. Já a informação aspira verificação imediata, precisa ser plausível. Diz Benjamin (1936): “Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente responsável por esse declínio”.
Mesmo recebendo sempre notícias de todo o mundo, somos pobres em histórias surpreendentes. Os fatos já nos chegam acompanhados de explicações. Quase nada está a serviço da narrativa e quase tudo serve à informação. Metade da arte narrativa está em evitar explicações.
A informação só tem valor no momento em que é nova. A narrativa ainda é capaz de se desenvolver depois de muito tempo.
Enquanto a informação precisa ser explicada, a narrativa foge à essas explicações. Quanto maior a naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais facilmente a história se gravará na memória do ouvinte, mais completamente ela se relacionará com a sua própria existência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontá-la um dia. Essa assimilação ocorre em níveis muito profundos e é necessário um estado de distensão mito raro nos dias de hoje: o tédio. Porém, as atividades mais ligadas ao tédio não existem mais nas cidades e estão desaparecendo do campo. Com elas, desaparece o dom de ouvir. Para manter-se viva a história precisa ser recontada, mas não existe mais uma comunidade de ouvintes para ouvi-la. Ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. A atividade metódica leva o ouvinte a esquecer-se de si mesmo, gravando a história nele de forma mais profunda. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, escuta a história de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. No filme, Jess e Leslie constroem o forte de Terabítia com as próprias mãos e é o trabalho manual que possibilita à Jess despedir-se da amiga e assimilar sua morte no final.
A narrativa floresceu durante muito tempo num meio artesão, sendo ela mesma uma forma artesanal de comunicação. Ela não está transmitindo puramente uma informação. Mergulha na vida do narrador e sai com a impressão da marca deste. Os narradores gostam de começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que vão contar, a menos que prefiram atribuir essa história à uma experiência auto-biográfica.
Benjamin cita Paul Válery ao dizer que antigamente, o homem imitava a paciência da natureza para produzi belos produtos. Entalhava marfins com paciência, mas hoje não cultura o que não pode ser abreviado. “Dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com uma aversão cada vez maior ao trabalho prolongado”.
Assumir um trabalho artesanal, relaciona-se à idéia de eternidade. Esta idéia sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se ela está se atrofiando temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência à medida que a arte de narrar se extinguia.
No decorrer dos últimos séculos, a idéia de morte vem perdendo na consciência coletiva sua onipresença e força de evocação. Durante o século XIX, a sociedade burguesa produziu, com as instituições higiênicas e sociais, um efeito colateral: permitir aos homens evitarem o espetáculo da morte. Antes, morrer era um episódio público na vida do indivíduo e seu caráter era altamente exemplar. Hoje, a morte é cada vez mais expulsa do mundo dos vivos. Vivemos em espaços livres de qualquer morte e, em nossa hora, seremos colocados em sanatórios e hospitais. Esta distância nos afasta também da oralidade, pois:
É no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida (é dessa substância que são feitas as histórias) assumem pela primeira vez uma forma transmissível. (BENJAMIN, 1936)

O inesquecível aflora de repente nos gestos e olhares do agonizante, conferindo a tudo o que lhe diz respeito autoridade sobre os vivos. E é nessa autoridade que está a origem da narrativa. A morte é a sanção de tudo o que o narrador pode contar. Portanto, suas histórias remetem à história natural.
No filme, vemos que após a morte de Leslie, a história ganha um novo tom. As palavras e as lições que a menina passou à Jess ganham um peso tão grande que ele resolve dividir com a irmã o que aprendeu, como um ouvinte que se torna narrador. A morte da amiga é que valoriza Terabítia, que a faz mais mágica.
Benjamin diz que a relação ingênua entre o ouvinte e o narrador é domunada pelo interesse de conservar o que foi narrado. Para o ouvinte imparcial, o importante é assegurar a possibilidade de reprodução. “A memória é a mais épica de todas as faculdades (BENJAMIN, 1936)”. Somente a memória permite à poesia épica apropriar-se do curso das coisas por um lado, e resignar-se, por outro lado, com o desaparecimento dessas coisas, com o poder da morte.
A reminiscência funda a cadeira da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração. Inclui todas as variedades de formas épicas. Entre elas, em primeiro lugar, a encarnada pelo narrador. Ela tece a rede que todas as histórias constituem, articulando-as umas às outras. Em Ponte para Terabítia a memória também tem papel importante. Jess passa à irmã o reino encantado de Terabítia, mantendo viva a fantasia que foi criada.

Enquanto o romance aproxima-se do sentido da vida, a narrativa se importa com a moral da história.

Numa narrativa a pergunta “E o que aconteceu depois?” é plenamente justificada. O romance, ao contrário, não pode dar um único passo além daquele limite em que, escrito na parte inferior da página, a palavra FIM convida o leitor a refletir sobre o sentido da vida.
Quem escuta uma história está em companhia do narrador, mesmo quem lê partilha desta companhia. Quem lê um poema está disposto a declamá-lo para um ouvinte ocasional. Mas o leitor de um romance é solitário.(BENJAMIN, 1936)

Sozinho, o leitor se apodera do que lê, quer transformar a leitura em coisa sua, devorá-la. O leitor do romance sabe que o sentido da vida só se revela após sua morte. Procura no personagem do romance o homem de quem pode “ler” o sentido da vida. Precisa, então, estar seguro de que participará da morte do personagem; no sentido figurado (com o fim do livro) ou verdadeiro.

O grande narrador tem sempre suas raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais. Independentemente do papel elementar que a narrativa desempenha no patrimônio da humanidade, são múltiplos os conceitos através dos quais seus frutos podem ser colhidos. Comum à todos os narradores é a facilidade com que se movem para cima e para baixo nos degraus de sua experiência, sendo esta experiência a experiência coletiva onde o choque da experiência individual da morte não representa nem escândalo nem impedimento.
Mais uma vez, Leslie aproxima-se de um narrador tradicional. Tem talento para o artesanato, para trabalhar com a madeira e outros materiais para construir o forte. Seus pais também trabalham com artesanato, pois são escritores, tecem histórias. Juntos, realizam outro artesanato: pintar a casa. O tempo todo, os personagem aproximam-se de atividades manuais e artesanais.

Benjamin diz que o conto de fadas tem o primeiro narrador verdadeiro da humanidade e sobrevive até hoje na narrativa. Ele revela as primeiras medidas tomadas pela humanidade para libertar-se do pesadelo mítico. “O conto de fadas ensinou há muitos séculos à humanidade, e continua ensinando hoje às crianças que o mais aconselhável é enfrentar as forças do mundo mítico com astúcia e arrogância”(BENJAMIN, 1936). O conto de fadas dialetiza a coragem em dois pólos: astúcia e arrogância. Ele não mostra a natureza como uma entidade mítica, mas indica sua cumplicidade com o homem liberado. A coragem aparece em Ponte para Terabítia nos dois pólos descritos por Benjamin, na presença de Leslie (astúcia) e de Janice (arrogância).

Benjamin considera inscritos no mesmo plano: a alma, a mão e o olho. Eles definem uma prática que deixou de nos ser familiar. A mão agora ocupa um papel modesto no trabalho produtivo, deixando vazio o lugar que ela ocupava durante a narração. A antiga coordenação entre mão, olho e alma é típica do artesão. Benjamin compara a relação entre o artesão e sua matéria prima à relação entre o narrador e a vida humana. O narrador trabalha a matéria-prima da experiência (sua e dos outros), transformando-a em um produto sólido, útil e único.










Bibliografia
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre a literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (Col. Obras escolhidas; vol. I)

PATERSON, Katherine. Ponte para Terabítia. Rio de Janeiro: Salamandra, 1977.

Ponte para Terabítia. Dir. Gabor Csupo, 2007.

Início!

Oi, pessoal!
No início deste ano, criamos um grupo para estudar as linguagens com que a literatura infantil dialoga. Uma história pode ser contada de diversas maneiras e por diversos veículos e nosso objetivo é compreender como a literatura infantil e juvenil aparece no cinema, nos quadrinhos, nos jogos e etc.
Criei esse blog com o intuito de tornar mais acessível os estudos que realizamos no grupo. Eu sei que já temos o grupo de discussão ( cujo endereço é http://groups.google.com.br/group/estudos-sobre-literatura-infanto-juvenil ), mas o endereço é difícil de decorar e muita coisa pode ser disponibilizada aqui no blog. Assim, tentarei manter o blog atualizado de acordo com o grupo. Entretanto, alguns materiais estarão disponíveis apenas no grupo. Quando isso acontecer, avisarei aqui.
A idéia é ter um endereço que seja fácil de lembrar e possibilitar comentários de pessoas que não podem fazer parte efetivamente do grupo, mas se interessam pelo tema e gostariam de acompanhá-lo. Se tudo der certo, logo teremos uma revista. Enquanto não temos, ficamos com os recursos virtuais!
Beijos a todos e boas-vindas!